-Responder a essa pergunta é o objetivo desse post.
-Imagine a seguinte situação: você quer apresentar o seu amigo ao mundo de animes, fazendo um desfavor a ele e tornando-o em um viciado irremediável. Porém, você acaba esbarrando no dilema de qual anime escolher. Entre todos os gêneros que passam por sua mente, certamente slice of life não estará entre as recomendações. Não, não senhor. Você irá recomendar um anime de ação, preferencialmente shounen ou seinen, caso seu colega seja mais maduro, porque animes desse tipo tem mais “emoção” do que os outros. Nesses animes, “o plot existe”, “o fanservice não é exagerado” e “o moe não está ali para arruinar a indústria”. Esses jargões podem ser encontrados em qualquer canto da internet, principalmente nos fóruns gringos ou nas esferas elitistas da anisfera. Entre Shingeki no Kyojin e Non Non Biyori, a tendência é que o primeiro seja escolhido, e as razões alegadas serão essas, se o indivíduo tentar justificar. Caso contrário, ele simplesmente responderá que não curte animes do estilo.
-Independente da razão ou desrazão dessas afirmações, o fato é que elas só consideram o problema em um nível superficial e nunca exploram a fundo as implicações das causas estabelecidas. Por que slice of life é chato para a maioria? O que leva o ser humano a considerar o gênero como tedioso? De onde surge essa indiferença? É isso que vou tentar explicar nos seguinte parágrafos.
-Antes de tudo, esse texto é baseado nas teorias de
Émile Durkheim, um sociólogo francês do século XIX, seguidor da linha evolucionista (linha que acredita na evolução cultural do homem conforme o tempo). Em seu livro “As formas elementares da vida religiosa”, Durkheim parte de pesquisas sobre as tribos australianas e seus clãs para responder à seguinte pergunta: “Como surgiu a religião”? Primeiramente, é necessário destacar o que caracteriza uma religião, com que ele responde: “A religião é caracterizada pela antítese entre o sagrado e o profano, classificando o mundo e o homem de acordo com esses elementos”. É justamente essa contraposição entre dois elementos opostos que aqui será trabalhada.
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Um churinga |
-A proibição fundamental disseminada entre as tribos de religião totêmica é que o sagrado e profano jamais devem entrar em contato. Um membro que não tenha passado pela iniciação não é considerado sagrado, e assim não pode tocar nos instrumentos divinos, os churinga. Caso isso ocorra, esse indivíduo passa a acreditar que sua morte é iminente, ao passo que o restante do clã passa a considerá-lo como um transgressor. Muitas vezes, o estado psicológico do sujeito é tão desastroso que ele acaba realmente falecendo. Essa crença na punição automática resulta da crença de que as coisas possuem mana, uma espécie de “força” que as torna sagradas, e que, se transmitida para os que não estão preparados para recebê-la, torna-se letal por entrar em contato com o caráter profano dos mesmos. Mana é o próprio princípio totêmico, o princípio da fé.
-Em determinados banquetes de cunho religioso, certos rituais de proibição que os precedem devem ser observados. O objetivo destes é preparar os comensais de forma que sejam capazes de ingerir a carne do animal totêmico (cujo símbolo é venerado, e consequentemente sua carne torna-se sagrada) sem enfrentar os efeitos adversos. De certa forma, essas restrições funcionam de modo a sacralizar os membros da tribo, preparando-os para o festim. E qual é a exata reação do ser humano ao participar de um evento social, depois de tanto tempo de privações?
-Exatamente. Alegria incontida, efusividade, efervescência, delírio. As emoções humanas aumentam exponencialmente quando o grupo está presente. As pessoas sentem-se dotadas de uma força coletiva, uma moral, ambas muito mais elevadas do que nos dias rotineiros, em que estão cuidando dos afazeres diários, caçando ou pescando. É o momento em que a monotonia é rompida, as proibições são desfeitas e os exageros permitidos. O que os nativos comemoram não é o animal totêmico, seus ancestrais ou sua fé. Esses são apenas elementos secundários, cuja fonte é o princípio totêmico, o mana, que por sua vez são uma representação simbólica da força moral do clã. Sozinho, o homem não chega a lugar algum, mas com o grupo sua existência é renovada e consagrada.
-Daí, conclui-se que a sacralidade está associada com a união do grupo e o profano com casualidade, com a monotonia e rotina diária. Trazendo isso para os dias atuais, rememoramos o nosso expediente de trabalho, a louça a ser lavada, os ônibus lotados (menos pra mim porque vou de bicicleta), e tudo que provoca o stress e o desânimo habituais. O homem contemporâneo faz a mesma coisa que os nativos para escapar dessa rotina: foge para locais, atividades ou eventos que tenham o aspecto do sagrado, daquilo que eleva e acentua as emoções intensas. É por isso que as pessoas que preferem ficar em casa a ir para a festa encher a cara são consideradas “caretas”, “chatas” e “antissociais”. Outro exemplo prático é a pressão paterna, com jargões como: “você precisa arranjar uma namorada logo”, “quando é que você vai casar, joãozinho?” É a moral do grupo atuando inconscientemente nas nossas mentes.
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meninas de Non Non Biyori atarefadas com a colheita |
-E é por isso que os slice of life são tão ignorados. Visto que eles tratam de situações costumeiras e normais, tudo ali é considerado profano. Não há um herói que será reconhecido pelo reino ao salvar a princesa ou um personagem de origem alienígena que luta contra monstros espaciais para defender o planeta terra e sua população. O que há é uma tentativa de reprodução fiel da realidade e dos eventos que a permeiam, sem fortes emoções ou estados de espírito elevados. Por isso que a novela das 8 tem a audiência que tem. Não é só o slice of life, mas também há a presença de mocinhos (sagrado), romance (também considerado sagrado nos dias atuais) que lutam para ser felizes, ao passo que os vilões (profano) esforçam-se para que o contrário ocorra. É isso que faz com que os romances sobrenaturais – tão abundantes nas prateleiras de livrarias – sejam sucessos comerciais. É a mistura do elemento sobrenatural (sagrado) com o amor (sagrado) que permite tal proeza.
-Deve-se considerar, entretanto, que a individualidade dos nativos é relativamente baixa. Seu ego raramente é um problema para a ordem social vigente. Já nas sociedades burguesas e capitalistas, a coisa muda de figura. Encontra-se muita mais resistência à interação social e obediência absoluta, com os casos particulares extremos ocorrendo na terra do sol nascente, o Japão. O hikikomori não é meramente um transtorno antissocial, mas sim um protesto contra o alicerce da moralidade e da hierarquia instituídos em uma nação cuja economia é ameaçada pelas alarmantes taxas de natalidade. A noção de sagrado só mostra sua eficácia real quando o que é natural para a sociedade atua em prol da felicidade do cidadão. Os eventos sociais de presença física são substituídos pelos eventos do mundo virtual e o 2D passa a ser idolatrado como o novo princípio de razão moral. Visto que nos slice of life orientados para nicho predominam as personagens 2D nos moldes do moe, o gênero ganha um novo brilho na escuridão e alcança valores de 10k nas vendas de BD.
-Não posso afirmar que quem assiste animes do gênero encaixa-se sempre no mesmo perfil, mas sim que uma certa mentalidade é requerida para que o mesmo possa ser aproveitado. Num mundo em que a utilidade e praticidade são a lei, brincadeiras de garotinhas e situações corriqueiras são vistos como perda de tempo. Contudo, ao adquirir conhecimento dos fatos e de suas origens, acredito que seja possível preparar a consciência coletiva no sentido da expansão de pensamento e condicionamento mental, a fim de quebrar as paredes que barram o entretenimento.
Referência:
-Émile Durkheim – As formas elementares da vida religiosa