-Essa resenha contém vários spoilers, sendo direcionada principalmente a quem já leu o mangá.
Autor: Wakaki Tamiki
Revista: Weekly Shõnen Sunday
Sinopse: “Katsuragi Keima, um estudante do segundo ano, é viciado em jogos bishōjo. Ele é conhecido como O Deus da Conquista por causa de suas lendárias habilidades de “conquistar” as garotas 2D nos jogos. […] No início da série, Keima recebe um e-mail oferecendo-o um contrato para “conquistar” garotas. Quando ele aceita, acreditando ser um desafio em um jogo, um demônio do inferno chamada Elsie aparece. A partir de então, Keima passa a ter um contrato com ela, onde ele deve capturar espíritos que fugiram. Esses espíritos [Kaketamas] estão localizados dentro do coração de algumas garotas e a única maneira de retirá-los de lá é “conquistando” o coração delas, fazendo-as se apaixonarem por ele. Interessado somente em garotas de jogos, Keima inicialmente recusa a proposta, mas o contrato que ele aceitou diz que ele não tem escolha. A série foca as aventuras de Keima e Elsie tentando capturar os espíritos.”
-Primeiramente, esclarecimentos. Essa resenha é baseada no livro do autor brasileiro Nessahan Alita, intitulado “como lidar com mulheres”. Ao perceber que algumas das suas teorias poderiam ser aplicadas para explicar as conquistas do Keima (que por sua vez, são baseadas em conquistas de Visual novels, que por sua vez, são baseadas em conquistas do mundo real), aproveitei o ensejo (chique essa palavra) para incluir os pontos de vista desse autor na minha resenha. Eu fiz um certo esforço também ao introduzir uma breve conceituação do campo das teorias evolucionistas de seleção natural e uma brevíssima consideração no ramo da psicanálise. Antecipadamente, venho lembrar que são apenas teorias, logo não é minha intenção generalizar para todo e qualquer caso existente. Começarei então mostrando 4 exemplos de aplicação dos pensamentos de Nessahan Alita, para prosseguir com os outros tópicos.
Conquista da Kanon
-Essa é uma das primeiras conquistas do mangá, e a escolhi por evidenciar um aspecto muito importante na arte da conquista: a indiferença. “Mas como assim, Tanaka? Se você quer conquistar a menina, tem que tratá-la bem!”. Certamente, mas se você tratá-la bem o tempo todo, terá o efeito contrário do pretendido. Ao contrário do que aprendemos com a mídia e o senso comum, amor não é uma variável que se pode induzir nos outros simplesmente com cavalheirismo, honestidade e fidelidade. Em outras palavras, o amor feminino não é uma retribuição natural ao amor masculino. Keima sabe disso, e fez bem em observar que “um evento em que a garota corre atrás de você é uma armadilha”. Se ele simplesmente elogiasse a Kanon da primeira vez, a impressão que causaria nela seria a mesma de qualquer outro fã babaca, e isso não o ajudaria na conquista. Ao reagir com indiferença, ele ganhou destaque em relação ao resto, e ao permitir a aproximação da garota, passou a exercer o papel de suporte emocional, ao mesmo tempo em que preservava relativa indiferença, como podemos perceber quando Kanon se queixa de seu vício em videogames. Mesmo no fim, Keima resiste à influência do pedido dela, mantendo a distância e a aura “misteriosa” em torno de si, o que culmina com o beijo e a captura da Kaketama. Se ele se apaixonasse pelas garotas, não conseguiria fazer o que é preciso por medo de machucá-las. Logo, esse primeiro fator é o mais importante.
Conquista da Nagase
-Nagase foi parametrizada de forma a representar o exato oposto do Keima. Ela é uma entidade ativa ao extremo em relação ao mundo real, ao passo que Keima, por ser muito passivo, isola-se no mundo 2D. A semelhança entre os dois está no fato de que ambos não são aceitos pelo meio social, um sendo retraído demais, enquanto o outro é tão sociável que chega ao ponto de incomodar os outros. Via de regra, uma ideologia extremista surge para combater outra ideologia também extremista, mas oposta. Quando não há meio-termo, não há equilíbrio, e a balança acaba pendendo para um lado só. Como professor, argumento que não há uma solução pronta e mastigada para a falta de interesse dos alunos, tratando-se de um processo de refinamento contínuo do método. Decepções virão, mas com a experiência vem a resiliência e a adaptação necessárias para evoluir na profissão.
-Keima está certo quando diz que a rota da professora é uma rota complicada, pois há um fator essencial que deve ser levado em conta na perseguição da sua presa/do seu alvo:
superioridade. Nagase visualizava Keima como uma mera criança sem amigos que precisava de um pouco de atenção e orientação adequadas para abandonar os jogos e encarar o mundo real, e se ele continuasse nessa rota, ela jamais o veria como um homem de verdade, um reprodutor em potencial. Keima só se mostrou superior quando conseguiu demonstrar que era capaz de manter a sua convicção de gamer inveterado e fazê-la vacilar em sua própria. Por meio da crítica, ela foi induzida a um estado de dúvida, do qual só livrou-se sendo restituída ao estado de espírito otimista pelo próprio Keima (Notem que ficar incomodada com a reação dos alunos é um fator subjetivo, ao qual ela mesma se autoinduziu. O que o Keima fez foi obrigá-la a encarar a si própria como a fonte da angústia ao invés de projetar o problema nos outros). Assim, ele encarna a identidade de autoridade protetora e a conquista.
Yui: Segunda Conquista
-A Yui nível 2 (vestida de homem) foi um obstáculo mais difícil de superar do que as outras, pois ela é a única que consegue explorar a fraqueza principal do Keima – ele não é bom no PvP. Em questão de despertar afeto e ruborizar faces, ela consegue ser mais macho do que ele, e mantém a iniciativa quase o tempo todo. O fato é que ele não conseguiu reverter a situação por meios normais, e acabou tendo que pedir ajuda pra Haqua de modo a fazer a deusa despertar à força. Como todos sabem, a guerra de afeições costuma ser desigual com frequência. É comum ter alguém que é muito mais dependente do outro em termos de afeto e vice-versa, e nesse caso foi o Keima. Em uma situação hipotética, se ele escolhesse a Yui no final e a relação terminasse, a “terminante” seria a Yui e o “terminado” seria ele, que sofreria as mais graves consequências psicológicas. O ideal não é ser o submisso, mas fazer com que a pessoa desejada se submeta, visto que é a situação de maior segurança e menor risco. Quando um homem não é capaz de provocar emoções intensas na companheira, este ou leva um pé na bunda ou é traído. É aí que a já citada indiferença entra em jogo, pois o apaixonamento bloqueia as vias racionais de pensamento e torna o conquistador incompetente no que concerne às técnicas de conquista e manutenção de um relacionamento.
Shiori: Segunda conquista
-Keima foi bastante cuidadoso nessa conquista. Ele sabia que não poderia simplesmente chegar e iniciar uma conversação, pois ela se sentiria muita pressionada, logo aproximou-se silenciosamente e ficou encarando-a de modo a testar suas reações. Para garotas tímidas como a Shiori, a linguagem escrita funciona melhor do que a oral, e foi assim que começou aquele joguinho em que a Shiori mata o personagem do Keima na sua história enquanto ele fica tentando revivê-lo (uma das partes mais engraçadas do mangá). Quando ela acidentalmente o viu travestido, o que ele fez foi aparecer na frente dela de novo depois de algum temp, após ter feito a promessa de visitá-la no dia anterior e ter furado. Assim, ele não só induziu a Shiori a sentir falta dele, mas também envolveu-se em uma aura de mistério, usando isso a seu favor. Ele nunca tentou justificar nada para ela, nem sobre a Kanon nem sobre as roupas de garota (ele não buscou a aprovação dela, simplesmente declarou que se sentia melhor assim), ao mesmo tempo preparando o terreno para que as lembranças dela se tornassem mais nítidas. O ponto é: o tempo todo, Keima mexeu com o
emocional dela, ignorando completamente a parte racional, e fez muito bem. É inútil um homem tentar convencer uma mulher racionalmente, pois elas contra-atacam ardilosamente com inteligência emocional. A saída é confundi-las emocionalmente e tomar o controle da situação. No final, ela conseguiu escrever a história e despertar a deusa, reforçando seus sentimentos por meio da escrita.
Por que a Chihiro?
-Considerando as garotas estudadas até agora, percebe-se que a personalidade das mesmas é concebida de modo a ignorar completamente as influências do ciclo menstrual no comportamento, assim como outros aspectos da psique feminina que podem ou não irritar os desavisados. Tendo isso em mente, a Chihiro desponta como sendo a que mais se assemelha a uma garota do mundo real, o nosso mundo especificamente. Como consequência da seleção natural, as fêmeas sempre procuram os machos com os melhores genes, de modo a transmiti-los à a sua prole. Figuras de destaque, homens robustos ou candidatos com mais recursos materiais disponíveis são preferíveis a homens baixos, pobres e que não se destacam. Ela age da maneira mais previsível possível, apaixonando-se por um dos garotos mais populares da escola. “Mas, Tanaka, ela se apaixonou pelo Keima no final, então é uma garota diferente das outras!”. Ela ter se apaixonado pelo Keima também é previsível e explicável.
-Na primeira conquista (antes do arco das deusas) o Keima conseguiu, por acidente, simular as condições perfeitas para uma aproximação ao não mostrar/não ter interesse nenhum por ela. Como todos sabem, cantadas e investidas muito óbvias produzem o efeito de afastamento e repulsa imediatos (uma provável adaptação anti-estupro). Quando, porém, a aproximação se dá “sem maldade” ou “sem segundas intenções”, o rapaz transparece segurança em si próprio, o que o torna mais atraente aos olhos femininos. A segunda conquista também pode ser explicada a termos simples: trata-se do efeito de apaixonamento por osmose. Ao perceber que o Keima era popular entre as suas amigas mais próximas, ela impressiona-se e passa a visualizá-lo como melhor candidato para o acasalamento (papel de destaque), e isso não é incomum. Basta perceberem como mulheres solteiras costumam insinuar-se para os namorados de outras mulheres. Ter uma namorada ou ser popular com o grupo de amigas são fatores que conferem status. De todas as garotas, a Chihiro é a mais real, e considerando que um dos possíveis desenvolvimentos do Keima consiste em dar uma chance ao real, a escolha fica mais do que justificada. Para realçar mais ainda esse aspecto, é só repararem que ela é a única que apresenta os sintomas de pseudo-bipolaridade feminina (“hoje eu gosto de você, amanhã nem tanto, mas não vou falar porque”).
[Vi agora no mangá enquanto procurava imagens para esse post que ela se apaixonou pelo Keima desde antes da conquista. É um ponto de vista dela, que percebeu um afeto potencial tardiamente. Porém, considerando que, para perceber esse afeto, as condições aqui descritas tiveram que ocorrer, ainda considero os motivos acima descritos como válidos, visto que o período de apaixonamento é subjetivo e ela mesma não tem certeza de como aconteceu. Além disso, esse texto ficou bonitinho e eu não quero apagá-lo u_u]
Uma perspectiva de amor abrangente
-O amor 3D é tratado não como a oitava maravilha do mundo, mas com um pouco de cautela. A ele, temos a associação de anjos e demônios, com demônios “bons” e demônios “maus” inseridos no elenco, o que explicita uma natureza dual, cinzenta. Lembram da parte em que a chefe Dokurou é subitamente assassinada e o caos se instala por todo o esquadrão de captura de almas? Uma árvore que parecia ter frutos lindos, mas que escondia muitos frutos podres em seu cerne. É exatamente o que acontece quando há um rompimento de relações. O amor não pode simplesmente desaparecer de uma hora para outra, e por isso acaba dando lugar a transtornos e emoções igualmente fortes, ou até mais intensas. As lembranças felizes formam associações imediatas com a lembrança do rompimento, tornando-se fontes negativas de afeto, e a partir daí o indivíduo tem que passar por algo semelhante aos
cinco estágios da perda. É como se uma carga permanente de energia não tivesse onde ser descarregada (Freud inclusive desenvolveu na seu modelo para uma psicologia moderna uma hipotética “Q”, que ele chamou de quantidade, que “catexizava” (carregava com catexia) os neurônios, e que, nas experiências de dor psicológica, era liberada e retransmitida continuamente). Pode não acontecer se as emoções forem devidamente limitadas e controladas, de modo a não adquirir caráter obsessivo.
-O arco do passado trata de outra característica inerente ao amor –
o amor como guerra. Prestando atenção, aquilo que aconteceu na escola foi praticamente um experimento científico controlado: isole todos os garotos em uma sala de aula e deixe só as garotas para competir entre si por uma oferta de machos ínfima. No caso, o Keima representa essa oferta, e as competidoras representativas são a Tenri e a Kaori. A guerra é travada não só entre as duas garotas, mas entre o próprio Keima e a Kaori, que tentam fazer o outro ceder, seja pela sedução ou sabotagem dos planos um do outro. Paralelamente, o esquema de Vintage se desenrola, preparando o terreno para a chegada das Kaketamas, que irão se fortalecer por meio do “vazio” (gap) no coração das meninas.
-E o que seria esse “vazio”? Uma espécie de impedimento psicológico, a falta de coragem para fazer algo, vinculada ou não a algum elemento recalcado. Só que daí surge a seguinte pergunta: “Por que alguém iria precisar se apaixonar para resolver um problema? Não é mais fácil resolver o problema diretamente?”. Em todo caso, o amor não se configura como fundamental, funcionando apenas como facilitador do processo principal. A resposta se encontra em uma das cenas mais triviais do arco do passado. Keima manejou uma arma que forçava o “vazio” a surgir nos corações das garotas que serviriam como recipientes das kaketamas. Em outras palavras, uma insegurança externa foi forçada sobre elas. E essa insegurança faz com que não confiem nas próprias habilidades para resolver um problema, tendo que recorrer a um estranho para tal. Seria essa uma crítica à forma como garotas são criadas em casa? Um alerta para os possíveis efeitos da mídia fantástica? Eu não sei dizer, por isso formularei uma hipótese.
-Simplificando, o vazio introduz a necessidade de serem amadas, e o fato de isso não estar ocorrendo geraria o estado de insegurança. Elas precisam de amor pelo fato de não o
receberem, e quanto mais o recebem, mais satisfeitas ficam. Por convenção, definirei “receber amor” como “experimentar fortes emoções”. Todavia, “emoções fortes” podem ser muito perigosas, tanto para si mesmos quanto para os outros, por serem afetos extremos. Isso pode facilmente dar margem para o desenvolvimento de um vício compulsivo e devastador. Você se sente bem, e acaba querendo mais e mais, e a necessidade só aumenta, assim como um alcoólatra bebe para “curar” sua necessidade de bebida e um fumante fuma para curar sua necessidade de cigarro. Esse é o tão chamado
amor compulsivo, ou amor romântico. Essas são algumas das formas em que o amor poderá estar presente no mangá, dependendo de como o indivíduo as interprete.
-Minha nota? Bem, eu não sou como a
@beta_blood que escreve uma monografia pra depois dar nota 5. Se eu escrevi até esse ponto, é porque eu gosto pra caralho dessa joça. Não vi necessidade de ficar destacando errinhos de “plot”, personagens ou seja lá o que for, pois essa não é uma crítica impressionista (que julga “qualidade” por padrões arbitrários), e sim expositiva.
Nota: 9,5/10
Referências:
-PALMER; THORNILL. A natural history of rape.
-ALITA, Nessahan. Como lidar com mulheres.
-FREUD, Sigmund. Freud – Obras completas: Vol 1 – Publicações pré-psicanalíticas e esboços inéditos.