As Crônicas de Arian – Capítulo 22 – O homem sem passado – Parte 1 – Lar
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Capítulo 22 – O homem sem passado – Parte 1 – Lar
Sua cabeça doía e a visão estava embaçada. Alguém estava falando com ele, talvez mais de uma pessoa, mas não sabia quem era, ou sequer conseguia entender.
Tentou levantar, mas as pernas não obedeciam. Conseguia notar que estava em movimento, em cima de algo, provavelmente uma carroça. O que estava fazendo ali? Quem era a pessoa tentando falar com ele? Antes que conseguisse pensar mais a respeito, tudo se apagou.
Acordou de novo, já era noite. Havia uma garota loira sentada a seu lado e outra de menor estatura, uma criança com um incomum cabelo prateado, olhando para ele com ar de preocupação.
— Pode me ouvir? Consegue entender o que digo? — perguntou a garota, com um aspecto simples, olhos azuis e um cabelo loiro maltratado preso em um rabo de cavalo.
— Sim — respondeu ele, dessa vez, sendo capaz de escutá-la com mais clareza.
— Encontramos você na estrada alguns dias atrás. Pensávamos que tinha morrido. Estava com um braço e uma perna quebrada, e um enorme ferimento na cabeça, sangrava muito… — A garota falava devagar, provavelmente com medo que ele não entendesse.
— Tentei parar o sangramento, mas foi tudo que consegui fazer. Você começou a se curar rapidamente depois disso. O ferimento na cabeça mal aparece. Mas seu braço e perna ainda parecem ruins.
— Ah… — Ele ainda estava atordoado demais para responder, mas tentou olhar para os ferimentos que estavam doendo. Conseguia mover os braços, mas a dor era enorme quando o fazia. A garota de cabelo prateado parecia aflita vendo sua cara de dor ao tentar se mexer, então ele decidiu parar.
— Você parece um humano, mas eles não se curam tão rápido. Qual sua raça? — perguntou a elfa.
— Eu… não sei… — Nada lhe vinha à mente a respeito de si mesmo. Sabia que a garota na sua frente era uma meio-elfa devido a mistura de traços humanos com as orelhas pontudas e olhos claros. Já o homem, dirigindo a carroça, parecia um elfo puro. A garota mais jovem a seu lado parecia uma humana, mas seu cabelo e olhos de cor incomum era característico de demônios. O conceito de raças lhe era perfeitamente comum, porque não conseguia lembrar qual era a dele?
— De onde você veio? Porque estava no meio da estrada nesse estado? — A garota continuava a perguntar com calma.
— Eu…. eu não me lembro… — Começou a respirar ofegante depois disso. Era algo que ele deveria saber.
— Sabe, pelo menos, me dizer o seu nome? — indagou a garota, com um tom de preocupação.
A pergunta foi ainda mais chocante do que ele esperava. Não só por notar que não conseguia lembrar o seu nome, mas por não conseguir lembrar de absolutamente nada, sua mente estava em branco.
Ele se sentiu uma concha vazia, e isso doeu mais que seus ferimentos ainda abertos. Em desespero, lágrimas correram de seus olhos.
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— Quem diria que você era um chorão…
Arian riu.
— O desagradável do que está fazendo é que eu tenho que rever tudo junto com você…
— Pule algumas partes, se quiser, de preferência as chatas, fica até melhor assim.
— Bem, em resumo, teve uns incidentes desagradáveis depois disso, mas só serviram para eu descobrir que sabia lutar, como se alguém tivesse me ensinado, e minha memória muscular lembrasse os movimentos, mesmo sem eu saber exatamente o que estava fazendo.
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Quase 1 semana depois estavam na cidade de Cintra, uma das pequenas cidades em volta da gigantesca Arcadia. A família que o ajudou morava lá. O pai era um ferreiro, e a filha vendia doces na cidade. A viagem que fizeram foi para comprar matéria-prima a um preço mais em conta em uma cidade maior.
Seus ferimentos estavam quase que completamente curados, mas isso pouco o preocupava. O fato de não saber o que fazer, ou para onde ir, era o que o atormentava no momento. E o que aconteceu há 2 dias também. Alguém claramente tinha o ensinado a lutar, mas quem? Tinha uma espada com a lâmina ensanguentada com ele quando o encontraram, então era óbvio que já estivera em combate.
Mais estranho ainda era a garota de cabelo branco, que descobriu que só ele podia ver. Ela não falava, mas se expressava com gestos e olhares, e pelo jeito estava tão sem memória quanto ele.
Decidiu aceitar a proposta de Larkar, o pai da garota que o ajudará, chamada Emily. Ajudaria o pai dela em seu serviço de ferreiro, e em troca, poderia dormir no celeiro deles, até decidir o que iria fazer da vida. Achou estranho o aceitarem por perto depois do que o viram fazer há poucos dias, quando a carroça de Larkar foi atacada. Ele só se defendeu, mas pessoas normais não se defendem daquela forma. Depois de pensar a respeito, resolveu deixar isso para lá, tinha mais com o que se preocupar.
Como não sabia seu nome, o chamaram de Arian. Na verdade, foi Larkar que deu esse nome a ele, para a frustração de Emily, que reclamou do pai colocar o nome da mãe, Ariane, em tudo. O cavalo que os puxava, por sinal, se chamava Ari, e o cachorro deles, que morreu há alguns anos, Ar, de acordo com o que Emily lhe contou. Não sabia sua idade também, mas pela aparência, Emily chutou algo entre 14 a 15 anos.
Eles tinham uma pequena casa na beira da cidade. Era feita de madeira. Simples, mas bem acabada. O celeiro era pequeno também, com apenas duas baias. Arian dormiria na que não estava sendo utilizada.
Ariane, de quem o pai da garota tanto falava, estava aguardando por eles na porta da casa. Cabelo e olhos castanho claro, usando um vestido azul desgastado. Apesar de ser mais velha, e humana, sua aparência conseguia chamar mais atenção que a de Emily. Arian ajudou a descarregar os materiais e levou para o porão.
— Você, definitivamente, não é humano para conseguir carregar isso com um braço — declarou Larkar, ao reparar que Arian estava levando um saco cheio de metal como se fosse um saco de palha.
— Hum, não é pesado… — disse Arian com um sorriso no rosto. Fazer aquilo com facilidade lhe deu um estranho senso de superioridade.
— Maldição garoto… dizer isso para alguém que tem que arrastar esses sacos com a ajuda da filha é meio cruel, sabia?
Na segunda leva Arian tentou pegar quatro sacos de uma vez para se mostrar, mas tropeçou no meio do caminho, caindo com sacos em cima dele, e espalhando vários dos metais.
— Você está bem? — Emily estava se segurando para não rir. Já a garota de cabelo branco ao lado dele não disfarçou, só começou a gargalhar mesmo.
— Estou, não foi nada — Arian levantou com o rosto vermelho de vergonha, e começou a juntar o material, que se espalhou, de volta no saco.
No porão ficava a forja, onde o pai da garota trabalhava. Várias armaduras e armas de todo tipo decoravam as paredes. Nada muito extravagante, mas pareciam bem feitas.
Era muito mais protegida que a casa. As portas eram de ferro, com um cadeado enorme. Daria trabalho arrombar.
Se sentia meio perdido sem nenhuma memória para o guiar, mas tinha algo que sabia: para começar a se restabelecer naquele mundo precisava de dinheiro, e para tal precisava de um ofício.
Acordou no celeiro na manhã seguinte. A garota de cabelo branco, que estava ao lado dele quando acordou dias atrás, estava dormindo junto de Arian, com a cabeça encostada em seu ombro, o que lhe causava um misto de alegria e desconforto. Se sentia menos sozinho graças a ela, mas ter uma garota dormindo encostada nele lhe deixava bastante envergonhado e nervoso. Devia ter o quê? Uns 3 a 4 anos a menos que ele, era difícil dizer, já que o corpo era relativamente desenvolvido, mesmo não sendo muito alta. O rosto lembrava alguém perto dos 10 anos, talvez 12. Cada vez que ele olhava para o rosto dela dormindo ficava ainda pior: era linda, com os cabelos brancos meio bagunçados descendo até um pouco depois da cintura, e um rosto que misturava gentileza e dignidade. Era como ter uma garota da nobreza atrelada a ele, sem saber o motivo. Ela acordou assim que ele começou a se mexer, e deu um sorriso. Arian sorriu de volta. Era estranho, às vezes tinha uma leve impressão de que a conhecia, mas não fazia a menor ideia de como e onde.
“Era um fantasma”, foi a conclusão que chegou, ainda mais depois de descobrir que tinha mais gente que ele conseguia ver que ninguém mais podia. Emily pensou que ele era louco quando descreveu a garota na carroça. Mas por que o estava seguindo? Ele se perguntava. Ela também não era transparente, como alguns diziam sobre os fantasmas. Na verdade, isso o fez se questionar quem exatamente era real e quem era um fantasma, em sua visão. Até ali, a única forma de descobrir, era observando se o indivíduo em questão conseguia interagir com alguém, fora ele. Bem, ninguém estava vendo para o chamar de louco no momento, então era a oportunidade perfeita para questionar a garota:
— Pode me ouvir?
A garota balançou a cabeça.
— Por que está me seguindo?
Ela o abraçou, o que o deixou da cor de um pimentão. Mas isso não respondia muito, só podia supor que gostava dele por algum motivo.
— Certo… Você precisa de um nome… — Pensou por um tempo, sem muito sucesso. Parece que sua falta de memória incluía nomes também. — Que tal… Ariane?
A garota balançou a cabeça em negação.
— Não conheço muito nomes, ou pelo menos não lembro de muitos, vai ter que me ajudar. — Ele olhou para ela pensativo, até ter uma ideia. — A? B? C? D? E?
Ela sorriu no E.
— E… Já é um começo. — Animado, ele voltou a repetir o processo. — De novo, A? B? C?…Z? Nada? — questionou frustrado. Sua ideia brilhante rapidamente se mostrou falha. — Que seja, vou te chamar de <E> então.
A garota acenou levemente para ele.
— Certo, <E>, preciso trabalhar, vamos ver se eu era um ferreiro na vida anterior — falou empolgado. Por ser algo que nunca fez antes, estava encarando mais como uma brincadeira do que como um trabalho.
<E> ficou com uma cara de preocupação ao ouvir isso. Provavelmente estava prevendo o desastre que estava por vir.
No final daquele dia, descobriu que não tinha destreza manual para ser um ferreiro, nem ajudar um. Também percebeu que era desastrado e detestava calor. Ficar perto do fogo da forja foi um tormento.
— Você sabe lutar, por que não tenta entrar na guarda da cidade? — sugeriu Larkar no final do dia, vendo o garoto cabisbaixo no celeiro, ciente de que tinha mais atrapalhado do que ajudado.
— O chefe da guarda se impressionou bastante com o que você fez na entrada da cidade, no dia que chegamos de viagem. Talvez consiga um trabalho com ele.
Ele tinha entrado em uma briga entre alguns guardas da cidade vizinha, Maver, com guardas de Cintra. Não era nada muito sério, mas o que ele fez chamou atenção do chefe da guarda, que estava no local.
— Ele achou que eu sabia lutar, mas… Não diria que aquilo era saber lutar, foi mais…hum… meu corpo se movendo sozinho?
— Consegue pensar em outra opção? É um bom garoto, Arian, mas não pode viver o resto da vida nesse celeiro. Se quiser descobrir quem era, primeiro vai precisar de dinheiro, quer queira viajar em busca de respostas, ou se estabelecer aqui por um tempo. Eu diria para vender aquela espada que encontramos junto com você, mas uma Soul Blade quase morta que faz aquilo com qualquer um que a toque, que não você, não deve valer grande coisa. Então sua melhor opção é trabalhar mesmo.
Ao ouvir isso, e refletir por um breve instante, o garoto se decidiu.
— Onde fica o comando da guarda? — perguntou.
Larkar sorriu para ele e começou a explicar. Na manhã seguinte iria tentar sua sugestão.
— Então <E>, acha que tenho jeito para um soldado?
<E> fez que não com a cabeça, para a decepção do garoto.
— Sério? No que eu sou bom afinal?
<E> o abraçou e Arian começou a rir, levemente corado. Estava ficando um pouco mais à vontade com a completa falta de senso comum dela quanto a proximidade dos dois.
— Acho que ganhar abraços ainda não é uma profissão… Vamos ver como me saio amanhã.
Na manhã seguinte, foi com Emily até a cidade. Ela o deixou na frente da central da guarda da cidade. Não queriam o deixar entrar para fazer o teste, até que Emily chamou um guarda que era amigo dela desde a infância, Knok. Ele acompanhou Arian até o chefe do pequeno quartel, além de ficar o incomodando com um bando de perguntas sobre qual era a relação dele com Emily, claramente querendo saber se era seu namorado. Arian negou, para o alívio do garoto, que parecia ser alguns anos mais velho que ele. Provavelmente uns 17 a 18.
O chefe da guarda, Cesar, o reconheceu na hora e foi testá-lo.
— Muito bem, faça o melhor que puder. Eu te vi lutando antes, mas quero ter certeza. Já temos gente o bastante aqui, então só vou aceitar alguém que saiba lutar.
Arian pegou a espada de madeira que lhe foi oferecida.
Os dois entraram em posição de guarda e o instrutor avançou. Arian ficou meio perdido inicialmente, mas desviou do golpe com um movimento simples de perna. E do outro, e outro.
— Pare de apenas desviar e use essa espada, moleque!
Arian bloqueou o golpe seguinte com a espada, desviou do outro, rebateu o próximo golpe com tanta força que a espada de madeira de Cesar saiu voando, e em seguida estava com sua espada de madeira encostando no pescoço do instrutor.
— Agora sim! Parece que sabe lutar melhor que eu. Mas eu sou péssimo, então isso não é grande coisa. Gostaria de lhe colocar na vigília e patrulhamento da cidade, onde suas habilidades seriam mais úteis, mas, infelizmente, se te der uma posição alta direto, vai haver reclamação, então vai começar como carregador. Venha comigo, vou mostrar o que fazer.
Basicamente, uma das funções dos soldados daquele agrupamento era auxiliar na carga e descarga de materiais em carroças na cidade. Os mais novos eram geralmente encarregados disso. Ele acabou fazendo dupla com o homem que o escoltou até o comandante. Knok, o amigo de infância de Emily, era bem tranquilo e vivia o questionando sobre Emily, o que era estranho, considerando que conhecia ela há mais tempo do que Arian.
A partir daí, pelo próximo mês, sua rotina foi sair de manhã com Emily, realizar suas tarefas na cidade e voltar ao fim da tarde. Já a meio-elfa trabalhava em uma loja de doces e confeitaria, assim como sua mãe. O salário inicial dele era de apenas 1 moeda de prata ao dia. Ainda lembrava da divisão do dinheiro, felizmente. 100 moedas de bronze davam 1 de prata. E 100 moedas de prata 1 de ouro. Tirando a alimentação, sobrava apenas metade de sua moeda de prata para guardar, ou 50 moedas de bronze. Bronze era tão sem valor que as pessoas nem se davam o trabalho de catar se caísse, 10 moedas de bronze podiam te comprar no máximo um pão de péssima qualidade ou um doce pequeno.
<E> parecia gostar do serviço, ficava o tempo todo observando as pessoas na rua e copiando as roupas mais chamativas que via para mostrar a Arian, uma habilidade que o surpreendeu a princípio. Ele não entendia porque a garota não saía de perto dele, sempre a uns 10 a 20 metros. Estava ficando entediado com aquele serviço, e ficava invejando o pessoal da guarda responsável por patrulhar a cidade. Usavam o mesmo uniforme que ele: um casaco de couro, calça e botas pretas. O que os destacava era um símbolo no casaco, que significava que eram de patente superior. Eles também podiam carregar uma espada, o que os soldados na função de carregadores não podiam.
— Espero que consiga entrar para a patrulha logo, quero um salário melhor… — resmungou Arian, deitado no celeiro.
Emily já tinha oferecido para ele dormir dentro de casa, mas preferiu ficar ali. Não era tão desconfortável, e ao menos podia conversar com <E> livremente, sem ninguém ficar prestando atenção e o chamando de maluco.
— O serviço é fácil, apenas tenho que fingir que aqueles sacos são pesados para não chamar atenção, como Emily me alertou. É bem chato, ainda bem que tenho Knok para conversar, ajuda o tempo a passar mais rápido. Quer dizer, mais ou menos… ele só fala da Emily o dia todo. Não acredito que ele é apaixonado por ela há 10 anos e ainda não teve coragem de se confessar…
<E> começou então a apontar para si mesma.
— Não <E>, se começar a falar com você durante o serviço vão me chamar de maluco…
Enquanto <E> fazia uma cara de mau humor, ele olhou para a espada envelhecida a seu lado. Pegou nela e tentou dar alguns golpes, mas não se sentiu muito confiante no que estava fazendo. Era uma arma estranha, principalmente o fato de que parecia muito mais leve do que deveria, pelo tamanho. Era como segurar uma espada enorme e se sentir movendo uma faca.
— Mas o que é você? — questionou ele, tentando ler as inscrições meio apagadas na lâmina da espada. Se era uma língua, ele não a conhecia.
— Arian, temos um problema, poderia ir ajudar meu pai…
Ele não pensou, assim que a garota chegou pelas suas costas e o tocou, ele virou a espada instintivamente, só conseguindo parar a lâmina quando já tinha feito um leve corte no pescoço de Emily. Ele arregalou os olhos e soltou a espada.
— Emily, desculpe, eu não queria, eu…
A garota se afastou dele quando tentou tocá-la. Olhava para ele com medo, enquanto tentava estancar o sangue escorrendo de seu pescoço com as mãos.
— O que demônios eu sou? — disse ele, assustado consigo mesmo, e sem saber o que fazer.
Naquela noite, não conseguiu dormir direito, e na manhã seguinte foi Ariane, a mãe de Emily, que lhe trouxe o café da manhã, em vez da filha.
— Como ela está? — perguntou.
— Um pouco assustada, mas não foi nada grave.
— Eu não queria, foi algo…
— Ela explicou que deve ter te assustado enquanto estava treinando com a espada. Não se preocupe. Só dê um tempo a ela.
— Eu juro que vou sair daqui o mais rápido que puder, só esperem mais um pouco… — disse ele, com uma expressão de raiva para consigo mesmo.
— Arian, eu sei que se lamentar e dizer essas coisas pode parecer um pedido de desculpas, mas na verdade só está me deixando triste… Se quer se redimir, só tome mais cuidado da próxima vez. Sabe quantas besteiras eu já fiz quando era mais nova? Nunca errar é impossível, o importante é o que você aprenda com seus erros. E honestamente? Ter um guarda particular no celeiro, protegendo a minha casa por um prato de comida, está muito barato. Do modo que eu vejo, é você que está nos fazendo um favor — disse a mulher sorrindo para ele.
Ariane passou a mão em sua cabeça e voltou para dentro de casa.
Arian sorriu, graças a ela se sentia um pouco melhor. Infelizmente, seu consolo se perdeu quando viu o corte costurado no pescoço de Emily. Aquilo iria deixar marca…
Na tarde daquele dia, ele estava descarregando uma carroça na cidade, enquanto Knok era extorquido por um dos soldados da cidade. Arian só ignorava, conforme o amigo lhe instruiu. Alguns guardas tinham o costume de extorquir os mais novos, pedindo para pagar bebidas, roupas, ou coisa parecida, uma ou duas vezes por mês. Esse, no entanto, todo dia tinha um novo pedido para Knok, o que estava deixando Arian mais nervoso do que ele já estava no momento, ainda abalado pelo incidente com Emily. Foi então que o soldado saiu do lado de Knok e pegou no ombro de Arian.
— Ei, novato, você ainda não me pagou nada, pagou? Como você recém começou eu peguei leve no começo, mas sua folga acabou. Que tal me comprar aquela bota ali no mostruário do armazém?
Arian se virou e encarou o homem. Careca e com uma roupa desgastada da guarda.
— Compre você mesmo, com certeza ganha mais do que eu — falou Arian, de forma ríspida.
— Com quem pensa que está falando, soldado? — respondeu o homem, agarrando o colarinho da camisa branca de Arian.
— Me solte! — disse ele com raiva, apertando o pulso do homem, que logo gritou de dor, soltando a camisa dele e recuando.
O homem então tirou sua espada, e entrou em uma postura ofensiva. Arian deveria estar com medo, mas só conseguia sentir raiva no momento, raiva de si mesmo, e agora daquele homem também.
— Arian, não faça isso cara, não vale a pena, ele é do grupo do Zack, só pede desculpas e eu compro a bota.
— Acha mesmo que desculpas são o bastante, Knok? Se seu amigo aqui não abaixar a cabeça, e me dar pelo menos uma moeda de ouro, como um pedido de desculpas, ele vai apanhar tanto que não vai nem se reconhecer amanhã.
O homem se aproximou de Arian, e tentou forçar a cabeça dele para baixo. Quando Arian se recusou, o soldado apontou a espada em direção ao pescoço do garoto, que em um movimento rápido, tomou a espada da mão do homem e depois o arremessou para dentro da carroça que estava descarregando.
Descontar a raiva que estava sentindo de si mesmo naquele homem estava o fazendo se sentir bem.
— O que estava fazendo Arian? Ficou maluco?
Arian estava ignorando Knok. O soldado saiu da carroça e foi para cima de Arian, que segurou o soco que ele ia dar, usando apenas uma mão, e depois acertou um murro no rosto do sujeito, o arremessando alguns metros para trás.
Ele estava tentando se levantar, enquanto cuspia sangue. A boca esta cortada e alguns dentes haviam quebrado. Arian o observava com frieza. Aquele sentimento de superioridade era viciante. Estava humilhando um homem muito mais velho que ele, sem que o mesmo pudesse sequer reagir.
— Talvez tenha mais sorte com a espada — disse Arian, arremessando a espada que tomou do homem na frente do mesmo. O guarda, parecendo tonto, se levantou e pegou a espada.
Ele veio correndo na direção de Arian, que desviou com facilidade dos golpes da espada. Não precisava fazer nada, seu corpo se movia sozinho por ele. Arian estava fascinado consigo mesmo.
“Por que aceitou aquele salário baixo? Alguém com as habilidades dele deveria ganhar bem mais. Olhe o que ele podia fazer? Aquilo não valia mais do que a porcaria que lhe pagavam?”, pensou ele.
— Acabou? — disse o garoto, sorrindo, enquanto o homem a sua frente estava ofegante, já sem fôlego.
Foi quando Arian escutou uma voz desconhecida.
— É sério que está levando uma surra para um garotinho, Judas? Você não vale o dinheiro que eu te pago.
Um homem de cabelo preto, bem escovado para trás, e um casaco de couro de aparência cara, estava observando os dois. Atrás dele tinha cinco guardas com o símbolo da patrulha da cidade, um deles era enorme, e usava uma armadura pesada no corpo todo.
— Oliver, você entrou na minha equipe recentemente, não é? É hora do seu primeiro teste. Ajude Judas a dar uma lição nesse moleque — falou o homem de cabelo preto a um dos guardas de menor estatura, atrás dele.
— Zack, o Judas agrediu o Arian primeiro, deixa ele ir, por favor.
— Calado, Knok. Ele acertou um dos meus guardas, acha que vou deixar por isso mesmo? Mas, como está pedindo, não vou matá-lo, só cortar… bom, eu deixo ele escolher depois, me parece o mais justo… — disse Zack, como se não fosse nada demais.
Arian hesitou com o comentário, mas tinha outros problemas para se focar. Recuou um pouco quando o tal Oliver junto de Judas se aproximaram dele, ambos com espadas.
Ele desviou do golpe de um, depois do outro, tomou a espada da mão de Judas pela segunda vez, e defletiu a espada de Oliver usando ela. Era estranho, já não sentia mais raiva alguma nele, estava apenas se divertindo, maravilhado com o que podia fazer.
— Isso está ficando interessante… Olhem a cara de arrogância desse garoto… Vocês dois, chega de brincadeira, lutem a sério! — falou Zack.
Ambos avançaram com intenção de matá-lo, o que fez Arian automaticamente adotar uma postura mais agressiva, sem notar. Ele não pensou, estava embriagado pela confiança de conseguir lutar contra os dois com tanta facilidade. Na primeira oportunidade agarrou o braço de Judas e o arremessou para trás, logo depois defletiu a espada de Oliver e voltou cortando seu pulso, da mão que segurava a espada. O homem se ajoelhou gritando. Arian se virou instintivamente para ver o outro homem que tinha arremessado. Ele estava correndo em sua direção com uma faca. Ele desviou da arma, e usando a espada em sua mão direita, cortou a cabeça de Judas. Sem parar o movimento, ele girou o corpo para trás rapidamente, e arrançou a cabeça do homem ajoelhado atrás dele, que ainda estava segurando seu pulso cortado. A cabeça de Oliver rolou no meio da rua, enquanto seu corpo caía sem vida para trás, e o sangue escorria pela terra.
— Arian, o que você…
Foi quando o garoto voltou a si. Ele matou dois homens? Não! Por que fez isso? Sua mente estava uma bagunça.
— Fantástico! Você tinha razão Stuart, esses dois lutavam muito mal… O que acha dele? — Zack tinha se virado, estava falando com alguém atrás dele.
Um homem de mais de 2 metros com armadura completa, inclusive cobrindo o rosto, e com uma espada e um escudo em suas costas, atrás de Zack, balançou a cabeça, sem dizer uma palavra. Zack então se virou de volta para Arian.
— Muito bem… como alegrou minha tarde vou ser generoso. Tem duas opções: A primeira é virar um dos meus guardas pessoais, entrando no lugar dos dois que acabou de me privar. A outra, é enfrentar Stuart, se ganhar dele, o deixo ir e fazer o que quiser.
O homem gigantesco atrás de Zack andou calmamente para a frente do seu empregador.
Arian respirou fundo tentando organizar seus pensamentos.
— Eu… — Arian não conseguia pensar direito, seus olhos estavam focados no homem sem cabeça a sua frente, e sua mão com a espada estava começando a tremer.
— Eu…? É sério que está em dúvida? Seu salário vai aumentar em mais de vinte vezes… Prefere mesmo enfrentar o Stuart?
Dinheiro, era isso! Com aquele valor poderia sair logo da casa de Emily. Não era seguro para eles ficarem perto dele. Olha o que tinha acabado de fazer…
— Aceita logo, o Stuart não é humano, não vai ter chance contra ele! — sussurrou Knok, ainda aflito perto dele.
— Tudo bem… Eu entro para o seu grupo — falou Arian, da forma mais composta que conseguiu.
— Excelente, você começa amanhã! E Knok, ande logo com aquela garota, ou eu mesmo vou fazer o serviço. Emily, não era?
Knok engoliu em seco.
— Homens, peguem o que restou do Judas e Oliver, e joguem na vala atrás da cidade, depois estão liberados. Stuart, você vem comigo, temos mais uma casa para coletar imposto. Meu pai não está pegando pesado essa semana, tem cada vez mais pessoas na lista.
Arian ainda olhava para as duas pessoas que acabou de matar, enquanto os guardas de Zack arrastavam seus corpos com eles.
— Calma Arian, você só se defendeu, ninguém vai te culpar… Mas não faça isso de novo cara, você me deu um susto. Podia ter me dito que sabia lutar assim… Acho que o pior já passou, só entre na guarda de Zack por um tempo e depois peça para sair por um motivo qualquer. Vai ficar tudo bem. Arian, suas mãos…
Arian soltou a espada que ainda estava em sua mão direita, que não parava de tremer. Naquela noite não conseguiu deixar de pensar nos homens que matou, se tinham filhos, esposa e como eles ficariam? Quando finalmente conseguiu parar de refletir sobre isso, tentou respirar fundo e se acalmar, lembrando do que Knok disse: “o pior já passou”. Infelizmente, as palavras dele não podiam estar mais erradas.
Próximo: Capítulo 23 – O Homem sem passado – Parte 2 – Tudo por nada
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